14/07/2016

Artigo Separação patrimonial em tempos de crise, por Rafael Ramon

Separação patrimonial em tempos de crise

Por Rafael Ramon

Com o aprofundamento da crise econômica e a sobrevivência das empresas em risco, muitos empresários passam a se preocupar não apenas com a continuidade do negócio, mas também com as possíveis repercussões sobre seus patrimônios pessoais.

Essa preocupação é legítima, pois, apesar da legislação brasileira seguir os princípios da limitação da responsabilidade e separação patrimonial entre a empresa e seus sócios, essa regra não é absoluta em nosso país e são frequentes os casos em que empresários respondem com seu patrimônio pessoal por dívidas de suas empresas.

O conceito da separação patrimonial entre sócios e sociedade decorre da noção de que, sem a limitação da responsabilidade, não haveria incentivo para o empreendedorismo e o desenvolvimento econômico, de forma que essa limitação é princípio fundamental do direito comercial, só podendo ser desconsiderada em casos excepcionais.

A exceção a essa regra geral é o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que permite atingir os bens de sócios ou administradores. Esse instituto está previsto no artigo 50 do Código Civil, que dispõe sobre o abuso da personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Desta forma, se uma sociedade é utilizada para finalidades diversas das previstas em seu estatuto ou contrato social, ou ainda quando houver mistura entre o patrimônio (ou recursos financeiros) da sociedade com o dos sócios e/ou administradores (por exemplo, desvios, pagamento de contas de sócios pela sociedade, distribuição de valores irregularmente, etc.), pode haver a responsabilização do sócio.

Para evitar a responsabilização por abuso de personalidade é importante manter uma adequada organização contábil, financeira e societária, como por exemplo:

  • manutenção de contabilidade eficiente, com registro de toda a movimentação financeira;
  • somente efetuar retiradas das sociedades, como distribuição de dividendos, embasadas em documentação contábil com registro de lucros passíveis de distribuição, evitando, por exemplo, pagamento de contas de sócios, mistura de caixa, etc.;
  • evitar atos que possam ser entendidos como “esvaziamento” de patrimônio da sociedade, como por exemplo, transferir imóveis da sociedade para sócio pelo valor “contábil” quando a empresa já tem comprometida sua capacidade de saldar compromissos.

É importante destacar que essa regra de desconsideração pela qual se exige a demonstração da ocorrência de abuso de personalidade é mais aplicável às relações comerciais da sociedade. Isto porque se entende que, nessas relações, o credor tem condições negociais de decidir pela contratação ou não, e até mesmo de incluir em seu preço um valor pelo risco de não pagamento. A responsabilização do sócio de forma direta somente ocorrerá se este expressamente assumir a condição de garantidor do crédito (como fiador, avalista ou interveniente).

Cabe então ao próprio credor tomar o cuidado necessário para verificar se a sociedade tem respaldo patrimonial ou exigir garantias. Se não o fez, terá que demonstrar a ocorrência do abuso de personalidade para tentar vincular os sócios na eventualidade da sociedade não ter patrimônio para responder pela dívida.

Contudo, existem situações em que os sócios e/ou administradores podem responder com seu patrimônio pessoal independentemente de prova do chamado abuso de personalidade, tais como:

  • relações de consumo;
  • defesa da concorrência (infração à lei antitruste);
  • danos ambientais;
  • débitos fiscais;
  • débitos trabalhistas.

Nesses casos, pode haver a responsabilização mesmo sem prova de fraude, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Isso decorre da compreensão de que tais credores não são negociais, ou seja, não têm seus créditos decorrentes de uma relação negociada de igual para igual com o devedor.

Em razão da natureza “involuntária” do crédito, a lei e/ou jurisprudência concede a esses credores uma prerrogativa de buscar o patrimônio dos sócios na hipótese de não existirem bens suficientes na devedora (responsabilidade subsidiária). Mas, mesmo nas relações acima, há requisitos legais a serem observados para responsabilização dos sócios ou administradores, devendo em cada caso ser analisada a ocorrência das condições de responsabilização determinadas pela lei ou pela jurisprudência.

Chamo a atenção, ainda, para as novas regras do Código de Processo Civil, que determinam a necessidade de um procedimento incidental para responsabilização do sócio (mais informações na matéria “Novo CPC limita acesso ao patrimônio de sócios e administradores”).

No entanto, a Justiça do Trabalho é uma situação à parte. Aqui a regra, em muitos casos, é a de que alguém deve pagar a conta, independente da demonstração dos requisitos para responsabilização. Não são raras as situações em que uma pessoa que tenha saído de sociedade há muito tempo venha a ter seus bens penhorados. São também comuns caracterização de grupo econômico vinculando outras empresas nas quais os sócios tenham participação (sem que tenham nem mesmo controle em comum); penhora de dinheiro em conta bancária de sócio, mesmo quando a sociedade tem bens para responder pela dívida; entre outras situações que não seguem qualquer critério objetivo.

Por isso, recomenda-se que o empresário tenha seu patrimônio organizado, colocando seus bens (ou ativos) em pessoas jurídicas e ainda os separando de acordo com sua natureza ou destinação.

Organizar o patrimônio em estruturas adequadas, comumente chamadas de holdings, permite separar os ativos ligados às atividades operacionais dos bens de uso pessoal/familiar ou que geram renda (imóveis para locação ou compra e venda, por exemplo). Assim, pode-se evitar a “contaminação” de ativos em eventual problema com alguma empresa na qual possui participação societária. Essas estruturas são meios lícitos e eficazes não apenas para a proteção patrimonial, mas também podem ter utilidade sucessória, tributária e até para melhoria de gestão e controle, permitindo a administração mais organizada do patrimônio.

É certo que as medidas de organização do patrimônio dos sócios e administradores têm mais eficácia quando a empresa se encontra em uma situação de relativa normalidade (ou seja, antes de entrar em dificuldades ou situação de insolvência), mas quase sempre há possibilidade de se criar mecanismos para preservação/organização do patrimônio mesmo durante uma tormenta econômica. Assim, em uma tempestade (como a em que estamos), alguns galhos ou ramos podem até se perder, mas o patrimônio pessoal construído ao longo da vida do empresário deve permanecer firme, como um tronco ligado à raiz.

 

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